
Aquele olhar
Nunca me hei de esquecer daquele olhar. Cabiam nele toda a gratidão e toda a alegria possíveis. E talvez um pouco mais. Uma semana antes daquele olhar, tínhamos recebido a boa notícia: iríamos acolher uma família com três filhos e o quarto a caminho. E então começara o entusiasmo, a agitação, o nervosismo e os preparativos feitos com amor e gratidão. Que oportunidade de ser Advento, de acolher e cuidar da vida! Era uma notícia esperada e desejada, porque muito tempo antes daquele olhar, a Fundação Champagnat e a grande família Marista de Lisboa tinham-se comprometido, juntamente com dezenas de outras instituições, a acolher uma família de refugiados. Dez meses antes daquele olhar, uma família tinha chegado a um campo de Refugiados na Grécia com um bebé com pouco mais que um ano. Pelo caminho, muitas coisas aconteceram, depressa e dolorosamente devagar, como aquela bala que passou junto à cabeça de Mohamad ao atravessar a Turquia. Tudo porque cinco anos antes daquele olhar, um casal jovem que vivia na bela cidade de Alepo com os seus dois filhos recebera a noticia de uma guerra que não mereciam. Que ninguém merece.
Foi o Mohamad, o pai da família, que abriu a porta do prédio e a Eman que abriu a porta de casa. As portas de uma nova vida. Inshallah! E então a Ghalia e o Ahmed entraram a correr, provaram o sofá, olharam para tudo com admiração e sorriram. Sorriram muito, e nos seus sorrisos havia incredulidade e alívio. Que bom estar em casa! Mostrámos o resto dos compartimentos, incluído o quarto da Ghalia, e foi então que surgiu o tal olhar, esse que nunca hei de esquecer e que resume os muitos olhares e palavras (quase todas em árabe) deste dia. Contemplou todos os cantos do quarto com uma ternura indescritível, estudou os armários e a decoração e até deu nomes à boneca e ao peluche: Lulu e Mohamad. Depois chamou-me, mostrou-me o espaço que havia entre a cama e a parede e partilhou comigo a sua reflexão num inglês bastante compreensível Campo eu dormia num espaço assim, sem almofada, no chão... agora tenho este quarto. Estou muito feliz! A conversa continuou, intensa, com poucas palavras. Quando começa a escola? Eu também estou muito feliz. Estamos todos! E por isso queremos partilhar esta notícia com a nossa família Marista e com toda a gente. A guerra continua na Síria e em muitos sítios. Continua a haver milhões de pessoas em campos de refugiados. A morte, a desolação e o desespero espreitam em demasiadas esquinas. Mas hoje há muita gente que vai dormir com a boa notícia da hospitalidade e da esperança a vibrar no coração. Hoje o Deus menino entrou pela minha vida adentro no sorriso do Ahmed, no olhar da Ghalia, no choro da Naya e no bebé que foi gerado num campo de refugiados e que vai ter uma casa onde nascer. Hoje o Deus menino nasceu na entrega generosa dos Maristas azuis em Alepo. E hoje o Deus menino quer habitar também o teu coração acolhedor, os teus gestos solidários e o teu compromisso pela vida. Agora, enquanto escrevo estas linhas, os filhos do Mohammed e da Eman já devem ter adormecido, cansados pela viagem e pela euforia do dia. O calor que os embala é o calor de uma humanidade amorosa que já existe, de uma rede de corações de carne, de uma cadeia de gestos de ternura e responsabilidade. Oxalá que esse calor não pare de crescer.
Um Terno e Santo Natal.
Ir. Fábio Oliveira